“Language is an archaeological vehicle… the language we speak is a whole palimpsest of human effort and history.”
Russell Hoban
A colina hoje ocupada pelo Castelo de São Jorge é o sítio primeiro da ocupação humana — datada da Idade do Ferro — que transfiguraria em lugar a elevação estratégica sobre o estuário do Tejo e o seu território interior que deu origem à cidade de Lisboa. No conjunto amuralhado, a Praça Nova do Castelo ocupa um promontório intramuros, delimitado por estruturas defensivas a Norte e a Oeste, e pela Igreja da Santa Cruz a Sul, promontório com um domínio visual que se estende, por sobre as muralhas a Este, desde a cidade aos seus pés até ao horizonte do estuário.
Uma extensa escavação arqueológica deste sítio, iniciada em 1986, expôs vestígios dos seus sucessivos períodos de ocupação — povoamento da Idade do Ferro, habitações muçulmanas medievais e um palácio do século XV — tendo os artefactos mais relevantes sido removidos e expostos no Museu do Castelo, ficando a escavação aberta a uma intervenção de protecção e musealização.
Esta intervenção abordou os temas da protecção, revelação e leitura do palimpsesto que qualquer escavação arqueológica representa, com um intuito pragmático de clarificar o carácter palindrómico que as estruturas expostas sugerem na sua distribuição espacial.
Assim, a primeira acção foi a clara delimitação do sítio arqueológico com uma incisão precisa, comparável à incisão cirúrgica num corpo vivo. Uma membrana de aço corten foi inserida para conter a topografia perimetral, sobrelevada, permitindo quer o acesso quer uma leitura panorâmica do sítio, evoluindo a materialidade desta incisão lenta e inexoravelmente como um tecido vivo.
A mesma precisão de corte caracteriza os elementos inscritos no sítio que permitem a confortável deriva do visitante — degraus, patins e bancos, marmóreos e perenes — distinguindo-os da rugosa textura das paredes e fundações expostas.
Descendo à superfície escavada, ao seu simultaneamente primeiro nível espacial e último nível de ocupação — os vestígios de um pavimento do Palácio dos Bispos de Lisboa —, uma estrutura em consola protege os mosaicos, estrutura cujo anverso é uma superfície negra espelhada que devolve ao visitante a perspectiva vertical sobre o pavimento, perspectiva esta que a sobrelevada localização do pavimento não permite seja directa.
Avançando sobre o sítio e na sua linha cronológica, a necessária cobertura para a protecção das estruturas domésticas muçulmanas do século XI e dos frescos que sobre estas subsistem, foi tomada como oportunidade para reproduzir, através de uma interpretação conjectural, a sua experiência espacial enquanto sequência de espaços independentes organizados em torno de pátios que introduziam luz e ventilação a habitações de outra forma encerradas ao exterior.
Declaradamente abstractas e cenográficas, as paredes brancas que encenam a espacialidade doméstica das duas habitações escavadas flutuam sobre os troços de parede visíveis, ancorando-se no chão nos meros seis pontos em que esses troços o permitem, enquanto a sua cobertura translúcida, em policarbonato e ripas de madeira, filtra a luz solar.
Subjacentes a todo o sítio arqueológico, os vestígios da ocupação da Idade do Ferro são expostos e protegidos através de um volume compacto que, num movimento espiralado, se destaca das paredes limítrofes em aço corten para abraçar o poço necessário à sua revelação.
Maciço e dramático, este volume é pontualmente fenestrado por rasgos horizontais que convidam à curiosidade da observação do seu interior, conduzindo o visitante em volta do poço de escavação até ao ponto a vista é desobstruída e ambas as distâncias física e temporal das estruturas expostas é tornada evidente.
O palimpsesto da história do sítio é assim descodificado e a possibilidade da sua leitura palindrómica temporal e espacial clarificada: não apenas através da leitura da informação escrita que acompanha a visita, mas sobretudo, e significativamente, através da experiência construída pela materialização da sua protecção e musealização.